sábado, 18 de janeiro de 2014

Eu interpreto, tu concordas, nós nos entendemos


A metamorfose final é a humanização da natureza. É uma questão de amor: a transformação do Urso em Príncipe no momento em que o urso é amado. A identificação é uma mudança de identidade; a magia é o amor (Norman O. Brown).

 

A infância, por si só, é uma época mágica. Na ausência de brinquedos fabricados, a criatividade infantil se encarrega de prover aquilo de que sua imaginação necessita para a construção de mundos idealizados. Basta um pedaço de madeira e eis um cavalo pronto para cavalgar terras desconhecidas.  

Acredito que esse potencial imaginativo passou por muito tempo despercebido dos espaços escolares. O resultado é que para muitas pessoas, o ingresso na vida escolar não constitui um período que tenha resultado em lembranças felizes. O contato inicial com esse novo mundo foi, muitas vezes, cheio de expectativas, que aos poucos foram abandonadas.

A memória, lá pelos quarenta anos, ainda mantém fresca a lembrança dos cheiros e das imagens que impressionaram nesse período. São coisas simples, como um livro sendo tirado da embalagem para ser usado pela primeira vez. Ou de uma música ensinada para toda a turma. Exceto isso, não são muitas as lembranças de situações em que tenha havido a valorização da espontaneidade. Ouvir histórias envolventes, interessantes, representá-las, assumir o papel dos personagens, conversar sobre elas, cedia lugar ao lápis, ao caderno e ao apontador, instrumentos exclusivos para promoção do aprendizado. Creio que isso não nos permitiu desenvolver todo nosso potencial criativo. E que talvez, também por isso, a escrita só aconteça a muito custo.

O problema com a leitura naqueles tempos era que, em vez de as histórias serem encaradas como obra aberta, que possibilitassem a expressão de várias opiniões, como algo para ser lido e compreendido com a razão e com os sentimentos, era encarada mais como algo para se compreender de uma única forma. Quem sabia o que uma lenda, conto ou poesia significava era o livro didático. Não havia espaço para o exercício do senso crítico ou da imaginação. Os papéis diante da leitura escolar eram tão rígidos que se um aluno expressasse diante dos demais sua opinião sobre uma história lida coletivamente, logo se ouvia expressões de reprovação pela sala. Era um cochicho aqui, uma risada ali e uma crítica acolá. O resultado disso era que a gente ia aprendendo a guardar para nós mesmos as nossas opiniões. Verdadeiro paradoxo de uma escola que deveria estimular a participação coletiva, tendo em vista a formação para o exercício da cidadania em uma sociedade democrática.

Que recurso precioso é o potencial humano. Lendo um livro que me chegou às mãos (Corso, 2011), encontro uma discussão sobre o tema das fantasias infantis. A história O Jardim Secreto atravessa gerações e está cheia de material que os autores abordam com muita propriedade.

A discussão que fazem sobre a referida história me fez relembrar que foi a pobre Mary, “cantando e contando histórias, como nunca ninguém conseguiu antes” (p. 901), que ajudou a consolar seu primo Colin. Mary, como Sherazade, possui um poder muito especial para envolver a imaginação de seu ouvinte.

“É dessa maneira que a criança deixa-se convencer daquilo que ela mesma imaginou e acaba transformando-se pela experiência exterior que produz efeitos interiores, sendo que ela é, por sua vez, a representação de uma fantasia interior” (p. 911).

Particularmente, acredito que a imaginação é um dos recursos mais poderosos do ser humano, pela possibilidade de fazê-lo feliz e potencializar os instrumentos que vão permitir sua participação na vida coletiva. Conheço histórias de pessoas reais que superaram momentos críticos em suas vidas por meio da expressão artística, como a dança e a escrita.

A imaginação é a mediadora entre o mundo real e o mundo possível. Ela nos faz entrar em contato com realidades idealizadas. É ela que está por trás das grandes invenções humanas. Ainda assim, é um recurso natural, à disposição de todos nós.

“Um território mágico é um lugar onde se vivem aventuras nas quais por vezes nos parecemos de modo diferente daquilo que vemos no espelho e onde somos capazes de fazer coisas impossíveis na realidade, e ainda encontrar lugares, personagens e objetos concretamente existentes” (idem).

Pode ser que exista em cada um de nós a necessidade de vivenciar outros mundos, melhores e mais felizes, como um antídoto natural de que a natureza nos dotou para nos fazer buscar a nossa própria transformação em seres melhores.

 

Bibliografia

CAMPBELL, Joseph (org). Mitos, sonhos e religião: nas artes, na filosofia e na vida contemporânea. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mario. A psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto Alegre. Editora Penso, 2011.

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