sábado, 23 de março de 2019

A Experiência da Aprendizagem Mediada nas Instituições Escolares: Contribuições da Teoria de Reuven Feuerstein ao Trabalho Psicopedagógico


Os antigos gregos tinham um mito chamado O Leito de Procusto. Este personagem, cujo nome tem o significado etimológico de “esticador”, tinha o costume de hospedar pessoas em sua casa. Porém, no momento em que iam recolher-se ao leito, Procusto observava a estatura do hóspede. Caso fosse maior do que a cama, o que sobrava do corpo para fora era cortado. Em caso contrário, se a pessoa fosse menor do que a cama, era esticada até se tornar do tamanho da mesma. Procusto simboliza a intolerância à diferença, o apego a um padrão imutável.

A necessidade de pensar uma prática educacional capaz de atender a diferentes perfis cognitivos se mostra importante neste momento em que o fracasso escolar exclui simbolicamente muitos daqueles que compartilham o mesmo espaço físico dentro das instituições. Se todos são capazes de aprender, uma prática pedagógica consciente deveria ser capaz de contribuir para o desenvolvimento cognitivo, emocional e relacional de todos aqueles que passam pela escola.     

Budel e Meier (2012) trazem a explanação das ideias que constituem a contribuição original de Reuven Feuerstein para a o desenvolvimento da potencialidade humana, ao fornecer as bases conceituais da experiência de aprendizagem mediada. Um dos pilares da teoria feuersteiniana repousa sobre o pressuposto de que todo ser humano apresenta potencial para a aprendizagem. Como explicam os autores citados:

“Devemos sempre ter em mente que podemos produzir mudanças e que todo ser humano é capaz de aprender, independentemente de sua condição inicial. Esse é um dos postulados básicos da teoria da modificabilidade cognitiva estrutural de Reuven Feuerstein, que está alicerçada em um axioma universal: ´todo ser humano é modificável´” (Budel, Meier, 2012, p. 37).

Baseando-se na afirmação anterior, os autores propõem que o conceito de “inclusão” deveria supor a modificabilidade inerente a todo ser humano. Nesse sentido, para se incluir de fato, torna-se necessário repensar ações como o planejamento, assim como o currículo escolar.    

Mostram também como essas ideias estão relacionados ao contexto histórico em que Feuerstein desenvolveu as suas pesquisas, uma vez que teve a oportunidade de trabalhar com crianças que haviam tido pouca experiência de aprendizagem mediada. Naquela ocasião, os instrumentos padronizados de testagem da cognição mostravam apenas que o produto alcançado pelos sujeitos testados indicava que eles estavam aquém do resultado esperado para suas idades (op. cit., p. 88-89). Essa condição foi compreendida por Feuerstein de forma diferente. Não se limitando ao que apontavam os resultados dos testes, percebeu as dificuldades demonstradas por essas crianças como sendo o resultado do que veio a chamar de síndrome da privação cultural. As características dessa síndrome se manifestavam como dificuldades para interpretar textos simples, para perceber os dados presentes em uma situação, pela ausência de curiosidade e de atitude crítica, pelo desinteresse por aspectos da própria cultura, entre outros, como consequência de não terem vivenciado situações envolvendo a experiência de aprendizagem mediada (idem). Portanto, a síndrome da privação cultural poderia ser combatida pela oferta dessa mesma experiência.

Dentro do contexto escolar, o combate à síndrome da privação cultural demanda a realização de um trabalho pedagógico adequado, em que os desafios são oferecidos na medida em que possam ser resolvidos, gerando no sujeito mais motivação para continuar aprendendo.  

Além da instituição escolar, outros contextos, como o familiar, podem favorecer a ocorrência da síndrome de privação cultural, caso as relações sejam caracterizadas por atitudes como autoritarismo, negligência e superproteção. Enquanto que o autoritarismo gera medo da punição, a negligência se caracteriza pela falta de mediação, e a superproteção impede a criança de superar seus próprios desafios (op. cit. p. 97-98).

Modalidades da Mediação

Após a constatação desses aspectos, os autores passam a definir as características de uma experiência de aprendizagem mediada, de acordo com Feuerstein (op. cit. p. 125).

Em uma verdadeira experiência de aprendizagem mediada, a intencionalidade e a reciprocidade constituem o primeiro par de conceitos definidos pelos autores. Enquanto a intencionalidade é algo que deve estar presente na prática do educador, a reciprocidade é apresentada pelo educando. A intencionalidade leva o educador a ultrapassar o planejamento inicial. Ele questionará o motivo de a aprendizagem não ter se efetivado, levantando hipóteses e encontrando caminhos alternativos para que a aprendizagem seja efetivada. Atualmente, uma das queixas muito frequentes apresentadas pelos professores se refere ao desinteresse do aluno pelo aprendizado. Nesse caso, não se verificou a presença da reciprocidade. Isso exige mudança de estratégia, para que ocorra reciprocidade.

Mediação do significado é outro conceito importante. O significado que o educando encontra em determinada atividade depende de seus conhecimentos anteriores.

Transcendência consiste em ajudar o educando a ser capaz de identificar diferentes situações para a aplicação do conhecimento adquirido.

Mediação do sentimento de competência ocorre quando o professor consegue identificar a complexidade da tarefa com a qual o educando é capaz de lidar, interferindo positivamente no sentimento de competência. Outras maneiras de fazer isso ocorrem com a oferta de feedback do aprendizado, quando o educando percebe os seus próprios avanços. Além disso, um elogio, feito no momento oportuno, também pode promover o sentimento de competência.

A mediação da autorregulação e do controle do comportamento é um aspecto essencial para a aprendizagem. Ao lidar com as informações, ajudar o educando a controlar a sua impulsividade contribui para que utilize as informações de modo mais adequado, durante as fases de entrada, elaboração e saída.

A mediação do comportamento de compartilhar é algo que aproxima educador e educando, fortalece vínculos e humaniza o ambiente de aprendizagem. Mediação da individuação e da diferenciação psicológica é o tipo de mediação que se revela no trabalho educacional quando o educador consegue individualizar a sua ação, pois cada sujeito é único e necessita de ações diferentes para que o aprendizado ocorra.     

Na Mediação da busca, do planejamento e do alcance dos objetivos, o professor deixa claro para o estudante o objetivo de cada tarefa. Essa atitude passará a ser apropriada pelo educando, que também demonstrará a capacidade de planejamento de modo autônomo posteriormente.

Para a Mediação da busca pela adaptação a situações novas e complexas, faz-se necessário tanto o conhecimento do assunto a ser ensinado quanto do sujeito a quem se ensinará. A complexidade do assunto deve considerar o que o educando pode realizar, evitando que seja tão fácil que promova tédio ou tão difícil que promova desinteresse.

Na mediação da consciência da modificabilidade busca-se conscientizar o educando de seus progressos, de onde partiu e aonde chegou.

A mediação da alternativa positiva corresponde ao modo como, ao agir com otimismo, essa atitude impulsiona o educador em direção a novas alternativas para levar o educando a aprender. Isso inclui pesquisa, reflexão sobre a prática, entre outras ações.

Na mediação do sentimento de pertença, procura-se criar oportunidades para que o educando se sinta pertencente a um grupo, ao participar de um projeto significativo na instituição, por exemplo. O sentimento de pertença favorece o desenvolvimento da autoestima.  

Considerações Finais

A abordagem de Feuerstein favorece o desenvolvimento da autonomia na aprendizagem, promovendo melhor compreensão tanto dos aspectos relacionados à educação formal quanto dos demais ambientes vivenciados pelo sujeito. Mas antes de ser capaz de demonstrar autonomia, o sujeito necessita de experiências de aprendizagem mediada. Essa mediação irá constituir-se em um fator para a melhora da autonomia, resultado do desenvolvimento cognitivo conquistado pela oferta das experiências de aprendizagem mediada oferecidas previamente. Compreender o potencial transformador dos ambientes de aprendizagem, a partir de uma prática educacional alicerçada na convicção de que a cognição humana é modificável poderá contribuir para uma mudança significativa no âmbito pedagógico, nos tornando mais otimistas e responsáveis pelos resultados dessa ação.     

O conhecimento dos aspectos que podem prejudicar o desenvolvimento humano abre possibilidades à intervenção psicopedagógica em âmbito clínico, institucional e familiar. A partir desses conhecimentos, faz-se necessário o engajamento do profissional de psicopedagogia nos diferentes contextos de aprendizagem. No primeiro caso, isso pode ser feito aproveitando-se as oportunidades existentes, pela parceria com os educadores para propor alternativas ao processo pedagógico. No que se refere ao trabalho com as famílias, torna possível investir em orientações aos responsáveis, quando a falta de experiências de aprendizagem mediada estiver presente nas relações intrafamiliares. Além das orientações pontuais, a presença do psicopedagogo em reuniões de estudos dos professores e durante a realização de projetos como Escola de Pais poderia oportunizar momentos destinados à oferta de orientações.  

É importante combater o fracasso escolar. Para isso, não se pode continuar patologizando as dificuldades de aprendizagem. O conhecimento da abordagem de Feuerstein possibilita ao profissional de psicopedagogia que se torne o multiplicador de ações capazes de alterar positivamente a qualidade da relação de ensino e aprendizagem por meio da valorização das experiências de aprendizagem mediada.   


Bibliografia

BUDEL, Gislaine Coimbra; MEIER, Marcos. Mediação da aprendizagem na educação especial. Curitiba: Ibpex, 2012.