quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Atendimentos Psicopedagógicos: Um Caso Envolvendo Dificuldades de Leitura e Escrita




 

“J” é uma criança de oito anos idade, que cursa o terceiro ano escolar. Tem encontrado dificuldades para progredir em relação ao aprendizado de leitura e escrita. De acordo com sua responsável, foi apenas no presente ano que começaram a ser observados alguns progressos nesse sentido. Durante os anos anteriores a criança esteve sob a responsabilidade da avó materna. Às vezes J demonstra comportamentos agressivos em relação a seus colegas, sem razão aparente.

 Ao iniciarmos os atendimentos de J, propusemos uma atividade com jogos psicopedagógicos. Entre as coisas que procuro evitar é a avaliação do conhecimento escolar no primeiro momento. Weiss (2008, p. 56) sugere atenção nesse sentido. A experiência nos mostra que a avaliação do conhecimento escolar durante o primeiro atendimento não é uma boa opção, pois poderá ocasionar atitudes defensivas, gerando desinteresse por parte do avaliado em relação às atividades apresentadas.

Nesse sentido, penso sobre como alguns discursos vão sendo assimilados durante a nossa formação e acabam se transformando em parte do nosso modo de agir profissionalmente. A ideia de que há um tema recorrente por detrás das diversas situações vivenciadas pelo sujeito é uma questão a que procuro estar atento e que vem de outra leitura. Precisamos observar as linguagens expressas em atendimento, o que envolve a comunicação verbal e também a corporal. Observo, no primeiro momento, como é a forma de se posicionar diante do desafio surgido em situação lúdica. Durante alguns atendimentos, em trabalho com crianças inteligentes, mas inibidas, você pode perceber o tema recorrente em diversas situações. Numa dessas situações de atendimento, a aprendente afirmou que não aceitou fazer parte de um time de futebol, quando convidada por seus colegas, para não prejudicar o desempenho da equipe. Pouco depois, disse que em situações em que deveria ler em voz alta, começava a gaguejar e por isso evitava a leitura coletiva. O tema recorrente nessas situações é a insegurança. Já presenciei inúmeros casos parecidos, em que a convivência com os colegas de turma ou o posicionamento diante dos desafios do aprendizado apresentaram mudanças significativas após o investimento em orientações e a parceria com os educadores, resignificando o papel do erro e do desafio no processo do aprendizado.

No caso de J, especificamente, pareceu não haver uma situação caracterizada por uma dificuldade global. Era no âmbito escolar que a dificuldade se instalara. A coragem diante do desafio em situação lúdica não lembrava o aluno diante das dificuldades escolares. Também havia uma visão muito negativa das próprias potencialidades, chegando mesmo a fazer avaliações muito pessimistas de sua capacidade de aprender. Mencionou ainda, em certa ocasião, que acreditava que ninguém gostava dele na escola. Foi observado em situação de aplicação de prova piagetiana, com teste adequado à sua idade, cumprindo as expectativas desse momento de seu desenvolvimento. Com frequência, tinha dificuldade em dizer o dia da semana. A leitura dos numerais da ordem da centena não era feita adequadamente. Nas leituras que eram feitas para ele, sempre percebia intencionalidade, interpretando e dando respostas inteligentes para as questões apresentadas. No entanto, também era muito comum o uso de estratégias de adivinhação das palavras durante a leitura, o que o levava frequentemente a ler palavras diferentes das que estavam no texto. Além disso, era constante a prática de dizer “coisa” em vez dos nomes reais dos objetos. Na escrita, havia uma confusão na hora de usar determinadas letras cujos sons mudam conforme o contexto, como ao escrever “Gapão”, em vez de Japão. Aparentemente, em decorrência das próprias circunstancias de sua criação, parecia haver uma carência em relação a ser encorajado e poucas vezes alguém deveria ter valorizado suas realizações intelectuais. Nas ocasiões em que isso era feito, reagia muito bem ao reconhecimento obtido.

Embora muitos meninos de sua idade já realizassem leitura com fluência na língua materna, J continuava lendo de modo vagaroso, com muitas pausas e confusões relacionadas a letras de formas parecidas. Nesses casos, perguntava, às vezes, coisas como: “se a barriga da letra está para este lado, é d ou b?” À medida que os atendimentos prosseguiam, continuamos trabalhando com jogos, como Torre de Hanói, Barricade, Senet e Damas, entre outros, mas com ênfase em jogos relacionados à leitura. Em tais situações, foi possível observar aspectos como atenção, atitude diante dos erros e desafios surgidos à medida que a sua complexidade aumentava e a maneira como lidava com a perda. Para trabalhar a consciência fonológica, propus um jogo que eu mesmo desenvolvi, com figuras que apresentavam objetos cujos nomes iniciavam com grafemas representando o mesmo som. Trabalhamos com rimas, aliterações e apresentamos atividades que ajudavam a desenvolver a atenção para os aspectos da lateralidade envolvendo a leitura. Sua consciência fonológica desenvolveu-se rapidamente. O reconhecimento rápido das letras de forma parecida continuou sendo um dos aspectos que dificultavam a sua leitura e que teve que continuar sendo trabalhado. Para acostumá-lo a prestar atenção aos movimentos envolvidos na produção dos sons, foi providenciado um conjunto de cartas que conhecemos pelo nome de “método das boquinhas”. Fizemos algumas pesquisas sobre atividades que poderiam ser trabalhadas durante os atendimentos. No atendimento seguinte, entregamos pequenos pedaços de papel em tiras, contendo palavras que deveriam ser dispostas numa ordem específica para formar uma frase que fizesse sentido.

 

Depois passamos para a leitura de um poema do livro “a arca de Noé”. Ao longo dos atendimentos, vieram muitos outros títulos, como A chegada do invasor e O rei Gilgamesh, que estiveram entre suas leituras favoritas. Foi possível observar que as dificuldades de leitura existentes traziam consequências para outros aspectos, como aqueles relacionados ao léxico. Muitas das palavras encontradas durante as leituras dos textos ofereciam dificuldades em vista de não serem conhecidas. O vocabulário de alguém que não lê com frequência permanece mais restrito, como de fato é o de J. Muitas palavras não encontradas no dia a dia, presentes nos textos lidos, soavam-lhe estranhas. Gastava um bom tempo repetindo-as para si mesmo e depois perguntava pelos seus significados. Foi possível perceber que a fonte das letras impressas, assim como o estilo das mesmas, também poderia interferir na fluência da leitura. Quando as letras de um texto eram escritas em maiúsculas, isso influenciava significativamente a qualidade da decodificação apresentada.            

Ao longo do período em que ocorreram os atendimentos, mudanças significativas foram sendo percebidas. Conforme foi retomando sua autoconfiança, o interesse pela leitura foi surgindo. Combinamos que no próximo atendimento a leitura seria feita após a visita à biblioteca da escola, e que o livro lido nesta data seria escolhido por ele. Embora tivessem ocorrido poucos atendimentos até aquele momento, percebeu-se que a velocidade de leitura começa a mostrar evolução significativa. A presença de notações léxicas no texto costumava apresentar dificuldades. Em certo momento, pergunta como ficava o “a” com o “~” em cima. Nos estudos feitos sobre dificuldades de leitura e dislexia tenho lido que a correção deve ser possibilitada imediatamente após a ocorrência do erro. Aproveito, então, para reforçar a explicação, oferecendo exemplos de várias palavras em que surge o referido sinal. O fato de estar perguntando sobre notações léxicas demonstrava que seu interesse pela leitura estava aumentando. Dava a impressão de que começava a ver a leitura como algo que começava a fazer sentido. Não era só quanto ao ritmo da leitura que demonstrava evolução. Podia-se perceber melhora significativa com relação à autoestima e à motivação apresentadas para os estudos. Na escola, estava mais feliz e comunicativo.

Continuando os atendimentos com ênfase sobre as atividades de leitura, trabalhamos com jogos de adivinhação. Foram apresentadas frases do tipo: “Girafa é uma palavra que possui três sílabas. Existe uma ave cujo nome tem três sílabas, duas das quais é a segunda sílaba de girafa. Que ave é essa?” (Arara). Trabalhamos, no mesmo atendimento, jogos para exercitar a consciência fonológica e fonêmica. Por exemplo: “O que teremos se trocarmos a primeira letra da palavra PAZ pela letra F?”. “Como fica a palavra CARAMELO se eu pronunciar sem a segunda sílaba?”. “Encontre uma palavra que rima com CARTAZ”. Atividades como essas e as demais desenvolvidas tinham o objetivo de propor reflexões sobre a língua escrita.

Outros aspectos foram sendo observados à medida que os atendimentos iam ocorrendo. Um deles diz respeito à atenção. Notamos que era comum apresentar um comportamento desatento. Já nos primeiros atendimentos fiquei intrigado com o modo como o aluno respondia uma pergunta feita pela primeira vez. Em muitas ocasiões, a resposta parecia não ter relação com o que havia sido perguntado. Apresentada pela segunda vez, a resposta esperada ocorria quase sempre. Entre as intervenções necessárias, evidentemente poderia contribuir para ajudá-lo a intervenção pedagógica feita por meio de leituras em voz alta. Muitos alunos não leitores ou leitores lentos são capazes de apresentar bom conhecimento de mundo, sem que consigam, muitas vezes, decodificar adequadamente um texto. Quando não há atenção especial para esses casos, os alunos acabam prejudicados. Pensemos sobre como nós, leitores experientes, muitas vezes recorremos à releitura quando uma questão não nos pareceu clara o suficiente para ser respondida. Nesses casos, sempre relemos. Quando a releitura não for possível, não deveria ser possibilitada por um leitor mais experiente, quando necessária?

Nos atendimentos seguintes, voltamos a trabalhar sobre os sons, com jogos como Trinca dos Sons. Adaptei esse jogo de outro que uso com frequência, o jogo Trinca dos Animais. A ideia do jogo é formar trios com figuras de objetos e/ou animais que iniciem com o mesmo som. Algumas figuras que usei foram: bola, dente, navio, nave, dedo, tocha, vassoura, dado, tatu, teia, vela, peixe, foice, faca, música, pipa, maça, nuvem, foca, pato, vaca. Escolhi as figuras por serem mais comuns e evitarem ambiguidade na hora de identificá-las. Em seguida, passamos para a leitura e recontagem de histórias. Como ele não tinha muita prática nesse sentido, a princípio pareceu um pouco relutante. Depois que eu mesmo realizei essa atividade com duas histórias curtas, aceitou recontar uma história que li em voz alta. Em determinados momentos, tomava a iniciativa de ler um trecho de um livro de seu interesse. “J” afirmou durante o último atendimento: “Agora é sério, eu estou aprendendo a ler mesmo”. Disse que estava praticando a leitura diariamente em casa, com os livros que emprestava da biblioteca.

Certamente será necessária muita atenção às dificuldades que ainda existem. No entanto, é inegável que avanços significativos foram feitos. A observação dos progressos identificados durante os encontros realizados nos motivam a continuar investigando sobre formas de atender tais demandas. Também nos conscientizamos de que a formação continuada é uma necessidade que se impõe à prática de qualquer profissional da educação, e que essa formação se faz no diálogo entre os estudos teóricos e nossa prática diária.

Qualquer intervenção realizada diante de situações de baixo desempenho escolar se caracteriza por sua complexidade. As pessoas são diferentes em suas aptidões, criações, valores, aspirações e numa infinidade de outras situações que caracterizam a singularidade humana. No caso em questão, buscamos focalizar as estratégias psicopedagógicas empregadas para realizar a intervenção. No entanto, estamos cientes de que as dificuldades do aprender não ocorrem de maneira isolada. Pelo contrário, envolvem todas as dimensões da pessoa que aprende. Por esse motivo, ao trabalhar com a oferta dos serviços necessários, é importante que as ações contemplem os aspectos afetivos e relacionais do aprendente. Também é importante que se ofereça apoio aos responsáveis, pois muitas vezes o sofrimento daquele é vivenciado por esses.

E também podemos pensar sobre o quanto é importante o desenvolvimento de ambientes institucionais humanizados para que o aprendizado se estabeleça dentro de um ambiente capaz de estimular no ser humano a capacidade de acreditar em seu valor e em suas potencialidades, aspectos diretamente relacionados ao aprender, em nosso modo de entendê-lo.

Não há justificativa alguma para o fracasso na educação de uma criança inteligente, que mesmo assim esteja se mostrando incapaz de progredir no aprendizado da língua materna, embora tenha dedicado três anos da vida aos bancos escolares. A realização de diagnósticos e intervenções individualizadas é a única forma de auxiliar essas crianças em seu aprendizado. Para que seja evitado sofrimento e prejuízo à sua autoimagem, esse acompanhamento deve ter caráter preventivo, iniciado o mais cedo o possível. Parafraseando uma frase que ouvi, podemos dizer que quando o aluno não aprende do modo como é ensinado, é preciso ensiná-lo de modo como pode aprender.

 

Pesquisa Bibliográfica

 

LEVINE, Melvine D. Educação Individualizada: motivação e aprendizado sob medida para seu filho. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

LINS, Guto. Cadê. São Paulo: Globo Livros, 2009.

PERRAULT, Charles. Contos e fábulas. São Paulo: Iluminuras, 2007.

SOUZA, Flávio de. A chegada do invasor: São Paulo: Editora FTD, 1994.

WEISS, Maria Lucia Lemme. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

 ZEMAN, Ludmila. O rei Gilgamesh. Porto Alegre: Editora Projeto, 1999.

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