terça-feira, 17 de novembro de 2015

Os Mecanismos de Defesa do Ego em Educandos com Dificuldades de Aprendizagem e sem Obstáculo Epistêmico

  
O presente trabalho constitui um resumo do estudo monográfico apresentado por ocasião da conclusão da formação psicanalítica. No trabalho original, além do termo de consentimento dos responsáveis, foi obtida a autorização da Secretaria de Educação do referido município, para a realização da presente pesquisa. Os nomes dos avaliados foram substituídos pelos termos genéricos “menino” / ”menina”, seguidos das suas respectivas idades e da apresentação resumida do caso. Entre os instrumentos utilizados durante o atendimento psicopedagógico, podemos mencionar as provas piagetianas (Weiss, 2008) e o Par Educativo (Chamat, 2008).
O propósito da pesquisa foi investigar a presença de aspectos afetivos em educandos que apresentaram dificuldades em relação ao aprendizado escolar, embora em condições de desenvolvimento cognitivo normais. O interesse pelo tema se justifica, pois a compreensão do papel que os mecanismos de defesa do ego desempenham nas dificuldades de aprendizagem possibilita o desenvolvimento de ações que contribuirão para elevar a qualidade das condições afetivas vivenciadas pelos educandos, tanto na instituição escolar quanto no espaço familiar.
Optamos por uma concepção de desenvolvimento humano em que o sujeito é compreendido em suas diferentes possibilidades, o que deve incluir também sua dimensão afetiva. Assim, na investigação de um problema de aprendizagem, devem ser observados os diversos fatores capazes de alterar as condições do desenvolvimento normal, tais como os aspectos cognitivos, pedagógicos e emocionais, levando em conta que essas dimensões estão em constante interação, o que influencia o produto que o sujeito é capaz de apresentar em condições de ensino e aprendizagem. De acordo com Weiss (2008, p. 24-25):
Aspectos emocionais estariam ligados ao desenvolvimento afetivo e sua relação com a construção do conhecimento e a expressão deste através da produção escolar. Remete aos aspectos inconscientes envolvidos no ato de aprender (op. cit. p. 25).

Em nossa experiência diária, percebemos que a interferência dos fatores emocionais durante uma situação de atendimento psicopedagógico pode ser constatada, por exemplo, quando uma determinada consigna é apresentada ao educando, que em vez de realizar o que se pediu, cria algo aparentemente sem relação com o que foi afirmado. Percebemos que a existência do obstáculo epistemofílico insere a demanda da afetividade no trabalho pedagógico e apresenta algumas questões. Porque o objeto do conhecimento pode se transformar em algo temeroso? Como contribuir para que educandos com dificuldades de aprendizado escolar recuperem o amor pelo conhecimento? Porque alguns educandos com dificuldades de aprendizagem agem, diante da comanda do par educativo, como se não a tivessem ouvido? Nesse último caso, em vez de criarem algo relacionado à situação de ensino e aprendizagem, conforme solicitado, apresentam cenas ligadas a outros contextos. Qual a relação entre esses conteúdos projetados e as ações necessárias para ajudá-los? Exemplos como esse nos fizeram questionar sobre os limites que alguns instrumentos podem apresentar em determinados momentos do atendimento psicopedagógico, trazendo a necessidade de ampliação de nosso referencial teórico, pela investigação dos subsídios embasados pela teoria psicanalítica. Essa questão nos levou ao estudo do tema referente aos mecanismos de defesa do ego.
A hipótese inicial foi que a existência de mecanismos de defesa do ego, quando presentes nos casos não relacionados ao desempenho abaixo do esperado para as idades dos educandos, poderia ser um indicador de que aspectos externos ao organismo poderiam estar colaborando para a instalação de condições que acabam produzindo a dificuldade de aprender. Por outro lado, também achamos importante investigar se os mecanismos de defesa do ego seriam uma resposta apenas à dificuldade de apropriação dos conhecimentos escolares.

Os Mecanismos de Defesa do Ego
Historicamente, de acordo com Roudinesco (1998), o surgimento do conceito de mecanismos de defesa do ego ocorre nos ensinos de Freud a partir de 1894, com o texto “As neuropsicoses de defesa”, e, de acordo com a mesma autora, a noção de “defesa” foi concebida por Freud como “o eixo do funcionamento neurótico em relação aos processos de organização do eu” (idem). O interesse de Freud consistiu em compreender a maneira como o eu reage diante “das solicitações capazes de perturbá-lo” (idem). Esses elementos perturbadores podem se originar em fonte externa ou interna.
Para compreender os mecanismos de defesa do ego, é importante refletir sobre outro conceito, o qual diz respeito ao prazer. O prazer ultrapassa a dimensão da necessidade. Por isso, o bebê pode continuar buscando o seio materno depois de saciada sua fome (Nasio, 1999, p. 47). Portanto, podemos concluir que o prazer encontra-se vinculado à motivação, atendendo uma necessidade que ultrapassa o limite do orgânico. Em vista dessas considerações, é possível concluir que, mesmo um comportamento de evitar se concentrar na aula quando a disciplina não consegue ser aprendida ou assumir a atitude indisciplinada diante da mesma situação, pode ser algo que esconde um sofrimento psíquico do sujeito, bem como o refúgio na fantasia para encontrar, em relação a um objeto apresentado, uma alternativa em que o prazer não se encontre suprimido. É nesse sentido que a finalidade da fantasia pode ser percebida. Ela tem a função de aliviar o apelo de um desejo não atendido, por meio de um disfarce (Nasio, 2007, p. 11).

Exemplos Observados Durante Atendimento Psicopedagógico
As considerações teóricas anteriores, a respeito da fantasia, ou seja, seu caráter inconsciente e substitutivo de uma situação desprazerosa, trazem à mente o caso de uma criança de sete anos, que, ao ser incentivada a acrescentar detalhes a uma situação trazida para o atendimento, ria como que surpresa de ter sido a autora da situação que acabara de projetar na folha de sulfite diante de si. Em sua fantasia, inventou uma situação de conflito entre uma diretora de escola e um professor, cujo desentendimento levou a primeira a fazer um feitiço para que o segundo quebrasse a perna e não conseguisse ir à escola. Nesse caso, o desejo não atendido – de aprender, é substituído por outro – de não ir à escola.
No exemplo dado a seguir, pôde-se perceber que a criança que estava sendo avaliada não se manteve nos limites da comanda do Par Educativo. Pelo contrário, desenhou algo que parecia muito mais voltado a outras necessidades imediatas de sua vida familiar:


Neste caso, é bem sugestivo o diálogo que a criança desenvolve entre os personagens desenhados. Conforme ela afirma, o personagem masculino (à esquerda) é o pai da menina (personagem ao centro) da ilustração. Quando a personagem manifesta o desejo de entrar na floresta, o primeiro diz:
 “_ Eu não gosto disso que você está fazendo”.
Em seguida, a menina resolve desobedecer e entrar na “caverna” (antes definida como “floresta”), para ficar “de boca aberta” ao descobrir que o macaco tinha uma família lá dentro. Quando retorna de sua descoberta, seu pai não estava mais no mesmo local, havia ido embora e a deixado sozinha. Como foi possível perceber, após a realização de anamnese com responsável, que os aspectos projetados pela criança estavam relacionados a acontecimentos bem próximos a sua própria história familiar. A personagem criada pela aluna tinha o desejo de conhecimento, porém com a presença de um adulto lhe dando segurança. É na fantasia que percebemos que o mecanismo de defesa do ego denominado “compensação” ocorreu neste caso. 
Um educando com dificuldade de aprendizagem recebeu atendimento psicopedagógico. Nessa ocasião, foi-lhe comunicada a consigna do Par Educativo: “Agora, gostaria que você desenhasse duas pessoas, uma delas está ensinando, a outra está aprendendo”. Foi interessante observar que o desenho retratou a escola do lado de fora, como se o autor do desenho fosse um observador externo, em vez de participante da instituição. A situação também não apresentava as duas pessoas solicitadas na consigna. Nesse caso, o significante apresentado estava relacionado a um significado latente, uma vez que o educando se colocava, a princípio, fora da cena em que os elementos são interpretados. Portanto, não seria possível compreender a projeção nesse caso fazendo uso de instrumentos cuja análise depende de aspectos como a posição do aprendente em relação ao ensinante, uma vez que ambos estavam ausentes da cena representada. Nesse caso, seria necessário recorrer a outro referencial, em que fosse possível contrastar os dados observados em atendimento, a fim de compreender o significado do desenho produzido. Como mecanismo de defesa, poderíamos entender que o que foi projetado nesse caso se tratava de ”anulação”.

Aspectos Quantitativos da Pesquisa
Total de Alunos Avaliados: 59
Período de Realização da Pesquisa: 1° e 2° bimestres de 2015
Idades dos avaliados: indivíduos entre 6 anos e 11 anos e 10 meses.
Total de Educandos com Dificuldades de Aprendizado Escolar e Sem Obstáculo Epistêmico: 30
Análise de Casos e Discussão dos Resultados

Dos 59 casos que compuseram a amostra, foram encontrados 30 que não apresentaram obstáculo epistêmico. Os números incluídos na tabela correspondem à ordem em que a avaliação do sujeito foi apresentada na monografia. A descrição dos mecanismos de defesa do ego pode ser apresentada de acordo com a seguinte tabela:
Tipo de Mecanismo
Números relacionados
Regressão
6, 13, 20, 26, 31, 42, 43, 46, 59
Agressão voltada para a própria pessoa
49


Acting out
3, 38

Conclusões
Conforme os dados obtidos, é possível observar que existe um percentual significativo de alunos cuja dificuldade de aprender é existente mesmo na ausência de obstáculo epistêmico que o pudesse justificar. Para ser mais exato, entre os 30 casos em que se constatou desempenho epistêmico normal, 18 sujeitos que compuseram a amostra apresentaram alguma espécie de comportamento ansioso, enquanto 12 deles apresentaram algum tipo de mecanismo de defesa do ego. Isso quer dizer que 60% dos casos envolvendo dificuldade de aprendizagem envolvem também alguma questão emocional, um percentual muito expressivo para ser ignorado. Tal resultado evidencia a importância do olhar atento aos fatores de natureza afetiva, os quais podem trazer consequências para o aprendizado. O aprofundamento da interpretação e o conhecimento da teoria psicanalítica poderão, nesse sentido, contribuir significativamente para a compreensão das dificuldades de aprendizagem escolar, bem como em relação às estratégias necessárias para auxiliar educandos e educadores na aquisição de uma melhor compreensão da presença dos elementos afetivos no processo de ensino e aprendizagem. Acreditamos que os dados obtidos evidenciam que a oferta de uma educação que faça a diferença deve ser caracterizada por romper com a prática educacional baseada em dicotomias artificiais, do tipo cognição/emoção, instruir/educar, que não correspondem àquilo que a realidade atual apresenta como sendo necessário ao trabalho educacional. De acordo com uma das definições desta pesquisa, a neurose pode ser compreendida como o resultado de uma dificuldade do ego em atender uma demanda derivada da necessidade do indivíduo. Portanto, podemos pensar que se o fortalecimento do ego constitui um dos propósitos da educação formal, seríamos levados a diluir a barreira imaginária entre o que pertence ao psíquico e o que pertence à pedagogia, pois além de elaborar defesas quando suas demandas não são atendidas, o ego também é a parte que utilizamos ao perceber ou refletir sobre aspectos da realidade. Nesse sentido, os propósitos da educação e da saúde convergem.  







Bibliografia
BÉDARD, Nicole. Como interpretar os desenhos das crianças. Editora Isis: São Paulo, 2010.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Nasio, Juan-David. A fantasia: O prazer de ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

________________. O prazer de ler Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.


ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


CHAMAT, Leila Sara José. Técnicas de diagnóstico psicopedagógico: o diagnóstico clínico na abordagem interacionista. São Paulo: Vetor, 2008.

VISCA, Jorge. Psicopedagogia: novas contribuições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
___________. Técnicas Projetivas Psicopedagógicas e Pautas Gráficas para sua Interpretação. Compiladora: Susana Rozenmacher. 4ª ed. Buenos Aires: Visca & Visca, 2013.  
WEISS, Maria Lucia M. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008. 13 ed.