terça-feira, 23 de julho de 2019

Contribuições do Profissional de Psicopedagogia ao Atendimento de Alunos Disléxicos


Casos de crianças e adolescentes que, embora dotados de boa capacidade para a execução de atividades em outros domínios, demonstram expressivas dificuldades para a realização da leitura de textos simples, podem deixar os seus professores intrigados. Mesmo educadores com experiência em alfabetização podem experimentar o sentimento de frustração diante de um caso em que as dificuldades de leitura persistem, apesar de seu empenho em oferecer ajuda profissional. Muitas vezes notamos como a tarefa de converter sinais acústicos (sons) em grafemas (letras), mantendo a ordem em que foram emitidos, pode ser exaustiva para algumas crianças em idade escolar. Nessas condições, é possível que se esteja diante de um caso de dislexia.
O início do interesse por esse tipo de transtorno remonta ao ano de 1872, quando o termo “dislexia” foi mencionado pela primeira vez. Posteriormente, no ano de 1896, Morgan publica um estudo, no British Medical Journal (BMJ), relacionado ao caso de um adolescente com incapacidade para ler, embora fosse dotado de condições adequadas de inteligência (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 133). No ano de 1928, Orton estudou crianças que apresentavam inabilidades para a leitura, as quais evidenciavam “distorções perceptivo-linguísticas”, que resultavam na produção de letras, palavras e imagens espelhadas (idem). Ao diagnóstico dessas crianças, com dificuldades acentuadas para a aquisição da leitura, porém com inteligência preservada, Orton aplicou o termo “estrefossimbolia”, o qual relacionou a tais inversões na escrita que, segundo sua opinião, era algo encontrado com frequência nas crianças que apresentam o transtorno. Continuando os estudos sobre o assunto, Orton verifica que a dificuldade dessas crianças estava relacionada à possibilidade de reproduzir, na ordem apresentada, sequencias de letras ou sons. Para Orton, a dislexia estava associada também às dificuldades na lateralidade, vendo relação entre esse aspecto e as questões visuais, como a escrita em espelho. No entanto, estudos posteriores, como o realizado por Ramus e cols, em 2003, questionaram esse aspecto (op. cit. p. 135).
Outra conclusão a que Orton chegou foi que essa condição estava presente entre pessoas da mesma família, indicando a relação do transtorno com o fator genético (op. cit. p. 133-134). A hipótese genética foi investigada de maneira intensa na década de 1990. Nesse período, os estudiosos do assunto se interessaram pela busca de indicadores que relacionavam o distúrbio à presença de más formações, ou também de alterações funcionais no cérebro de disléxicos, sendo confirmadas ambas as hipóteses por meio de estudos de autores como Kemper, Galaburda, Levistsky e Duffly (op. cit. p. 134). Em 2001, Galaburda e cols relacionaram alterações na citoarquitetura cerebral, em áreas como córtex temporal e tálamos com as dificuldades no processamento dos sons por parte de pessoas disléxicas (op. cit. p. 140).   
Estudando os casos de crianças disléxicas, percebeu-se que a dificuldade para a leitura não era causada por problemas sociais, emocionais, déficits sensoriais ou falta de motivação ou de instrução (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 135). Essa forma de compreender a natureza da dislexia está presente em documentos oficiais utilizados por especialistas no momento presente:
“As dificuldades de aprendizagem não podem ser explicadas por deficiências intelectuais, acuidade visual ou auditiva não corrigida, outros transtornos mentais ou neurológicos, adversidade psicossocial, falta de proficiência na língua de instrução acadêmica ou instrução educacional inadequada” (DSM 5, p. 67).
As características associadas à dislexia incluem leitura lenta, imprecisa, hesitante, realizada com grande esforço. Também ocorrem dificuldades na soletração de palavras. Na leitura em voz alta, notam-se tentativas de adivinhação. Por exemplo, lendo a primeira sílaba e tentando deduzir qual é a palavra. Pode acontecer também de a leitura ser realizada de modo adequado, porém com comprometimento na compreensão das ideias do texto. Na escrita, podem ocorrer acréscimos, omissões ou substituições de vogais ou consoantes. As dificuldades dos disléxicos costumam ficar mais evidentes à medida que os assuntos escolares se tornam mais complexos. No DSM 5, os transtornos específicos da aprendizagem também são classificados de acordo com a terminologia “leve”, “moderada” ou “grave”, dependendo da intensidade do prejuízo ocasionado ao sujeito no domínio acadêmico (idem).
Quando submetidas aos testes de inteligência, as crianças que apresentam transtorno específico da aprendizagem com prejuízo na leitura demonstram desempenho equivalente ao de seus pares, em que não são verificadas as mesmas dificuldades de leitura. Esses sujeitos costumam apresentar lentidão ao ler, sendo as palavras lidas individualmente, o que dificulta a compreensão do texto lido. Durante a leitura, a dificuldade do disléxico ficaria mais evidente diante das palavras inventadas, ou pseudopalavras (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 135).
Outros estudos contribuíram para a compreensão das diferentes manifestações da dislexia, em que podem ocorrer dificuldades para o processamento dos sons (disfonética), ou em que a dificuldade predominante é visual (diseidética), ou ainda em que as dificuldades resultam de uma combinação de ambas as modalidades anteriores, o que constituiria em uma forma mais grave de dislexia (op. cit. p. 137).  
O melhor conhecimento dessa condição também possibilitou pensar sobre ações que poderiam contribuir para melhora nos critérios diagnósticos e em ações que poderiam ser realizadas diante de alguns indicadores da provável ocorrência do transtorno. As dificuldades no processo fonológico, que constituem um aspecto presente nesses casos, poderiam ser identificadas precocemente, já no Jardim de Infância, para o conhecimento dos sujeitos em risco (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 135). Programas de intervenção realizados precocemente podem contribuir para a melhora em relação às dificuldades apresentadas pelos disléxicos (op. cit. p. 144).

Ações Para Auxiliar Educandos com Dislexia

A entrevista realizada com a família permitirá o levantamento de informações importantes sobre o processo de desenvolvimento da criança. A anamnese precisa verificar os aspectos relacionados aos períodos pré, peri e pós natais, com as características do desenvolvimento global do aluno, bem como do desenvolvimento da linguagem oral e sua história familiar.
É necessário também estar atento aos aspectos comportamentais que podem surgir ao longo de sua escolarização, como problemas de autoestima, desinteresse pelos estudos, etc (idem).  
Também é importante verificar as características da leitura e da produção textual atual demonstrada pela criança (op. cit. p. 142). Na escrita, ocorrem confusões ao grafar letras que se diferenciam apenas quanto à disposição espacial (p/q, b/d), ou que tenham sons parecidos (t/d; f/v)? A criança inverte palavras na hora de escrevê-las? Sua escrita omite ou acrescenta letras? Encontra dificuldade para realizar a divisão silábica? Acha difícil reconhecer rimas? Sendo possível, tomar conhecimento das observações dos professores também auxiliará nesse momento. 
Profissionais da área da psicopedagogia ou da fonoaudiologia, ao tratar o problema, promovem a reeducação da linguagem escrita, fazendo necessária a realização de um diagnóstico adequado ao planejamento do tratamento (op. cit. p. 144). Outra ação importante desses profissionais se refere à indicação das adequações pedagógicas necessárias ao progresso escolar (op. cit. p. 155).
Uma investigação adequada da história do desenvolvimento pessoal do aluno e de suas dificuldades de aprendizagem possibilitará a elaboração de estratégias de intervenção mais eficazes, propondo mudanças positivas em todos os espaços de convivência do aluno.  

Algumas Sugestões de Ações e de Adequações Pedagógicas

Explicar ao aluno a natureza de seu problema e colocar-se à sua disposição para ajudá-lo.
Realizar trabalho de conscientização da turma, para evitar que o aluno seja alvo de ridicularização por parte dos colegas.
Posicioná-lo mais próximo de seus educadores, para permitir maior atenção pedagógica.
Explicar os conteúdos de forma objetiva e perguntar ao aluno se a explicação ficou clara.
Em caso de haver dificuldades atencionais, oferecer um lugar adequado, em que o aluno possa se concentrar na tarefa.
Adequar a complexidade dos textos oferecidos ao aluno ao seu nível de competência de leitura atual.
Evitar solicitações de que reescreva trabalhos já produzidos, pelo fato de conter erros de escrita. Considerar o conteúdo textual, mais do que sua grafia, como critério de notas.
Evitar solicitações de leitura em público.
Oferecer previamente uma cópia impressa dos textos que serão trabalhados em sala de aula, para que treine a leitura em casa.
Ensinar a realizar resumos de explicações oferecidas durante a aula.
Permitir o uso de corretores de texto para a realização dos trabalhos escritos.
Oferecer explicações em áudio, para que possa ouvi-las novamente, para compreender melhor o conteúdo, pois ouvir e escrever ao mesmo tempo constitui uma tarefa demasiadamente complexa para o disléxico.
Oferecer materiais que possam ser visualizados (gráficos, ilustrações, figuras) acompanhando o texto escrito.
Evitar solicitações de cópias de textos longos e deveres de casa com produções extensas.
Oferecer a possibilidade de realizar avaliações orais.
Disponibilizar tempo extra para a conclusão das atividades escolares.
Permitir o uso de calculadora e de tabela de multiplicação impressa (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016).

Criando Uma Rede de Apoio

É necessário que sejam consideradas as características das relações interpessoais experimentadas pelo aluno em seu dia a dia como um tema importante no suporte necessário ao seu progresso nos estudos. Nesse sentido, alguns autores destacam a relevância das características do ambiente para auxiliar alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem a lidar com o problema:
“Embora as dificuldades de aprendizagem sejam causadas por problemas fisiológicos, a extensão em que as crianças são afetadas por elas freqüentemente é decidida pelo ambiente no qual vivem. As condições em casa e na escola, na verdade, podem fazer a diferença entre uma leve deficiência e um problema verdadeiramente incapacitante. Portanto, a fim de entendermos as dificuldades de aprendizagem plenamente, é necessário compreendermos como os ambientes doméstico e escolar da criança afetam seu desenvolvimento intelectual e seu potencial para a aprendizagem” (Corinne, Strick, 2007, p. 30).
Não devemos nos esquecer da importância de oferecer suporte à família. Frequentemente, o conhecimento das dificuldades de aprendizagem não costuma estar entre os assuntos com os quais a família pode lidar sem ajuda especializada. O especialista em psicopedagogia, ao atender as famílias de crianças com dificuldades de aprendizagem, poderá esclarecer a questão e explicitar as estratégias que serão utilizadas, para que fique claro para os responsáveis qual será o seu papel nesse trabalho.
No espaço escolar, poderão ser desenvolvidas ações em conjunto, envolvendo o trabalho dos professores e do psicopedagogo, a exemplo das intervenções psicopedagógicas em sala de aula. Isso pode ser discutido previamente com os professores, a fim de planejar o melhor momento para a intervenção. Nessa ocasião, o psicopedagogo poderá contribuir, ao propor temas que despertem reflexões que favoreçam o surgimento de atitudes de sensibilização coletiva para o problema. 

Considerações Finais

Embora a dislexia não seja decorrente da falta de motivação para os estudos, notamos que a perda da motivação pode ocorrer diante da falta de assistência educacional adequada. A sensação de fracasso nos estudos também pode contribuir negativamente para o desenvolvimento de problemas relacionados à autoestima desses alunos, quando deixados sem o suporte pedagógico de que necessitam.
Uma adolescente disléxica que atendi anos atrás me relatou o seu sentimento de abandono diante da situação inicial de seu diagnóstico de disléxica. Conforme mencionou, “eles jogaram a bomba e depois saíram fora”. Com isso, quis dizer que o diagnóstico por si só não trouxe alteração na forma como o processo educacional era conduzido, pois continuava experimentando o sentimento de confusão nas situações de ensino e aprendizagem. Portanto, é necessário haver sensibilidade para a questão. A equipe escolar pode ajudar, adequando as demandas relacionadas às tarefas escolares e extraescolares. Outra questão importante, que tenho percebido, é a necessidade de desmitificação do problema. Tanto a criança disléxica, quanto seus familiares e educadores, necessitam compreender o que é a dislexia (Em algumas ocasiões, pode haver vantagem em explicar a natureza do problema para a classe em que o aluno disléxico está matriculado, após discutir com os responsáveis e com o aluno sobre essa possibilidade). O sentimento de confusão experimentado por todos os envolvidos no processo educacional precisa ceder lugar à atitude de certeza de que sabemos com o que estamos lidando e de que também sabemos como ajudar. Essa mudança pode contribuir para a redução das ansiedades experimentadas pelos envolvidos nesse processo. Nesse sentido, diante da necessidade de transformação nas condições escolares necessárias ao atendimento de alunos disléxicos, a atuação do profissional de psicopedagogia poderá trazer contribuições importantes.         

Bibliografia

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-5 / [American Psychiatric Association]. Porto Alegre: Artmed, 2014.
ROTTA, OHLWELER, RIESGO (Orgs). Transtornos da aprendizagem: abordagem neurobiológica e Multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2016.
SMITH, Corinne; STRICK, Lisa. Dificuldades de aprendizagem de A a Z : um guia completo para pais e educadores. Porto Alegre : Artmed, 2007.