sábado, 3 de maio de 2014

A Abrangência da Clínica Psicopedagógica: um caso de atendimento na educação infantil


‘Eu não sei se a psicopedagogia é uma ciência, mas ela era considerada a rainha das profissões porque, assim como se instrumentou a formação de psicopedagogia na Argentina, em geral não acontece no mundo inteiro. Acredito que o único país que tem formação em termos formais seja a Argentina. Não sei (...) não tenho informações de que em algum outro país alguém obtenha um diploma de psicopedagogia. Temos formações muito diferentes (Visca, 1991, p.17).    


A Jorge Visca coube a elaboração de uma “base epistemológica” a respeito “da teoria e técnica psicopedagógicas” (Visca,1991, p. 11). Percebi, durante a leitura deste autor, o quanto o interesse pela questão do conhecimento fora precoce em sua vida. Relembra sua infância, de quando seu pai, que era dono de um armazém, dizia algo aos seus funcionários. Em certas ocasiões, ficava intrigado com o modo como eles compreendiam o que lhes havia sido falado, resultado da apreensão de um significado que estava distante da intenção comunicativa original. Então conclui que a informação e sua recepção encontravam algum fator que deveria influenciar o modo como o sujeito a compreendia (op. cit. p. 14). “E por que a mensagem era interpretada erroneamente, se eu achava que era muito clara a informação? Mas era clara para alguns, não para outros. Não existia uma adaptação, uma adequação de informação para estas pessoas” (idem).

Outra experiência que menciona foi decorrente de seu trabalho diretamente com sujeitos que apresentavam dificuldades de aprendizagem. Cita, a seguir, um caso observado:

“uma criança que estava na 5ª série e um dia percebei que quase não escrevia, não lia... ela tinha chegado de outra escola quando o ano já estava adiantado. Então, fui fazer uma consulta no gabinete psicológico que tínhamos na escola e a psicóloga me convidou para começar a trabalhar no policlínico (hospital), na sala do Dr. Goldemberg. Eu aceitei e, ali, compreendi o que tinha acontecido com esta criança e suas dificuldades de aprendizagem e como ela progrediu. Ninguém tinha olhado além do produto do sujeito, e o importante era perceber o processo que o sujeito fazia na sua aprendizagem – ela tinha dificuldades importantes de caráter cognitivo, que depois eu consegui explicar melhor e saber o que acontecia. (...) Foi como uma corrente de coisas que, de alguma maneira, foram se organizando e estruturando para que eu me interessasse pela aprendizagem do sujeito” (pp.14-15).

É esclarecedora sua explicação a respeito da compreensão do trabalho clínico em Psicopedagogia:

‘Eu comecei com a psicopedagogia clínica, clínica num sentido mal utilizado da palavra, querendo dizer que é trabalho no consultório; porque clínica não significa isto de forma nenhuma. Na escola se faz clínica, na comunidade se faz clínica ... no sentido de perceber o sujeito como ele é. Diagnosticar este sujeito, trabalhar com este sujeito mesmo que seja um grupo ou uma comunidade, aceitando este sujeito como ele é. Eu acho que o consultório é um laboratório de pesquisa, mas agora acredito que o objetivo do psicopedagogo seja trabalhar com a sociedade em geral. Pesquisar a forma de aprendizagem que existe na sociedade em geral. Devemos “extrapolar” este conhecimento que temos para a comunidade. (op.cit. p.17).

O grifo do vocábulo “laboratório” é meu. Achei relevante salientar esse caráter do trabalho clínico em vista da possibilidade que o autor menciona ao dizer que o trabalho clínico proporciona a descoberta de aspectos que poderão ser “extrapolados” para um trabalho em proporções maiores, envolvendo o macrossistema.

Como resultado da experiência pessoal na atuação como psicopedagogo, poderia oferecer alguns exemplos de como a atuação psicopedagógica numa perspectiva clínica pode redimensionar o trabalho realizado em sala de aula. Mas por questão de objetividade, menciono apenas um. Dias atrás recebi a queixa de que uma criança estaria demonstrando agressividade em relação aos colegas. Nesses casos, quando a queixa se confirma, buscamos realizar a entrevista com os responsáveis e em seguida ofertar o encaminhamento para a área de Psicologia. Como o referido serviço já estava sendo oferecido ao educando naquele momento, partimos para a observação das interações da criança no espaço escolar. Para isso, foi preparada uma situação envolvendo jogos estratégicos e em seguida foi solicitado à professora que permitisse o desenvolvimento de uma atividade com os alunos. No caso dessa atividade, a mesma foi planejada para ser desenvolvida em dupla, ou seja, a criança interagiria com um colega da mesma turma. A presença do psicopedagogo durante a atividade consistiu em explicar as regras do jogo e em seguida mediar o desenvolvimento da atividade, garantindo que as mesmas estavam sendo seguidas. Analisando depois, percebi que nessa atividade ocorreram outras participações minhas que garantiram a sua continuidade, como, por exemplo, oferecer o feedback em momentos em que percebia a desatenção de um dos participantes, com frases como: “Olhe, você já conseguiu formar dois conjuntos. Agora falta o último”. Bem como outras que visavam à garantia do seguimento das regras: “Agora é a vez de seu colega. Você descartou, mas ele ainda não comprou”.

 

Além dos fatores que motivaram o encaminhamento feito pela educadora para o profissional de Psicopedagogia, foi possível observar alguns aspectos fortes do desenvolvimento do aluno, como a excelente memória demonstrada quando ele quis adaptar o jogo que tínhamos feito (trinca dos animais) para servir como jogo da memória.

Também percebi que questões relacionadas à aceitação de regras, controle da impulsividade e aprender a lidar com a frustração poderiam ser contempladas dentro de situações envolvendo contextos lúdicos, desde que planejadas para isso. No período de observação não houve sequer uma atitude que demonstrasse agressividade por parte do aluno em relação a mim ou ao seu colega, o que era exatamente o motivo da queixa escolar. Observado em seguida no próprio espaço da sala de aula, foi possível perceber que no contexto de brincadeiras espontâneas, com os brinquedos ali dispostos, ou seja, em um espaço não dirigido, não mediado, as atitudes incluídas na queixa voltavam a ocorrer. Assim, uma das conclusões é que seria importante trabalhar questões relacionadas à convivência em situações planejadas para esse fim.

É claro que o trabalho pedagógico realizado em contextos de atividades espontâneas pode ser útil, favorecendo o desenvolvimento da criatividade, da colaboração e da atenção, entre outras potencialidades. Ambas as modalidades, espontânea e dirigida, possuem sua importância no desenvolvimento individual. O que quero ressaltar é o potencial que existe no planejamento de atividades com vistas a trabalhar necessidades individuais do desenvolvimento. Um feedback oferecido à professora, nesse caso, se encaixaria perfeitamente no argumento do autor sobre o fato de o trabalho clínico ser um “laboratório” que permite “extrapolar” as experiências para o macrossistema. Nesse sentido, pode-se dizer que a clínica contribui com a educação, ao orientar processos que levem a assumir um caráter de formação mais global do sujeito.

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VISCA, Jorge. Psicopedagogia: novas contribuições. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991.