A metamorfose final é a humanização da
natureza. É uma questão de amor: a transformação do Urso em Príncipe no momento
em que o urso é amado. A identificação é uma mudança de identidade; a magia é o
amor (Norman O. Brown).
A infância,
por si só, é uma época mágica. Na ausência de brinquedos fabricados, a
criatividade infantil se encarrega de prover aquilo de que sua imaginação
necessita para a construção de mundos idealizados. Basta um pedaço de madeira e
eis um cavalo pronto para cavalgar terras desconhecidas.
Acredito que esse
potencial imaginativo passou por muito tempo despercebido dos espaços
escolares. O resultado é que para muitas pessoas, o ingresso na vida escolar
não constitui um período que tenha resultado em lembranças felizes. O contato
inicial com esse novo mundo foi, muitas vezes, cheio de expectativas, que aos
poucos foram abandonadas.
A memória, lá
pelos quarenta anos, ainda mantém fresca a lembrança dos cheiros e das imagens
que impressionaram nesse período. São coisas simples, como um livro sendo tirado
da embalagem para ser usado pela primeira vez. Ou de uma música ensinada para
toda a turma. Exceto isso, não são muitas as lembranças de situações em que tenha
havido a valorização da espontaneidade. Ouvir histórias envolventes,
interessantes, representá-las, assumir o papel dos personagens, conversar sobre
elas, cedia lugar ao lápis, ao caderno e ao apontador, instrumentos exclusivos
para promoção do aprendizado. Creio que isso não nos permitiu desenvolver todo
nosso potencial criativo. E que talvez, também por isso, a escrita só aconteça
a muito custo.
O problema com
a leitura naqueles tempos era que, em vez de as histórias serem encaradas como
obra aberta, que possibilitassem a expressão de várias opiniões, como algo para
ser lido e compreendido com a razão e com os sentimentos, era encarada mais como
algo para se compreender de uma única forma. Quem sabia o que uma lenda, conto
ou poesia significava era o livro didático. Não havia espaço para o exercício
do senso crítico ou da imaginação. Os papéis diante da leitura escolar eram tão
rígidos que se um aluno expressasse diante dos demais sua opinião sobre uma
história lida coletivamente, logo se ouvia expressões de reprovação pela sala.
Era um cochicho aqui, uma risada ali e uma crítica acolá. O resultado disso era
que a gente ia aprendendo a guardar para nós mesmos as nossas opiniões. Verdadeiro
paradoxo de uma escola que deveria estimular a participação coletiva, tendo em
vista a formação para o exercício da cidadania em uma sociedade democrática.
Que recurso
precioso é o potencial humano. Lendo um livro que me chegou às mãos (Corso,
2011), encontro uma discussão sobre o tema das fantasias infantis. A história O
Jardim Secreto atravessa gerações e está cheia de material que os autores
abordam com muita propriedade.
A discussão
que fazem sobre a referida história me fez relembrar que foi a pobre Mary,
“cantando e contando histórias, como nunca ninguém conseguiu antes” (p. 901),
que ajudou a consolar seu primo Colin. Mary, como Sherazade, possui um poder
muito especial para envolver a imaginação de seu ouvinte.
“É dessa maneira que a criança deixa-se convencer daquilo que ela mesma
imaginou e acaba transformando-se pela experiência exterior que produz efeitos
interiores, sendo que ela é, por sua vez, a representação de uma fantasia
interior” (p. 911).
Particularmente,
acredito que a imaginação é um dos recursos mais poderosos do ser humano, pela
possibilidade de fazê-lo feliz e potencializar os instrumentos que vão permitir
sua participação na vida coletiva. Conheço histórias de pessoas reais que
superaram momentos críticos em suas vidas por meio da expressão artística, como
a dança e a escrita.
A imaginação é
a mediadora entre o mundo real e o mundo possível. Ela nos faz entrar em
contato com realidades idealizadas. É ela que está por trás das grandes
invenções humanas. Ainda assim, é um recurso natural, à disposição de todos nós.
“Um território mágico é um lugar onde se vivem aventuras nas quais por
vezes nos parecemos de modo diferente daquilo que vemos no espelho e onde somos
capazes de fazer coisas impossíveis na realidade, e ainda encontrar lugares,
personagens e objetos concretamente existentes” (idem).
Pode ser que
exista em cada um de nós a necessidade de vivenciar outros mundos, melhores e
mais felizes, como um antídoto natural de que a natureza nos dotou para nos
fazer buscar a nossa própria transformação em seres melhores.
Bibliografia
CAMPBELL, Joseph (org). Mitos,
sonhos e religião: nas artes, na filosofia e na vida contemporânea. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001.
CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mario. A psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto Alegre. Editora Penso, 2011.
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