“J”
é uma criança de oito anos idade, que cursa o terceiro
ano escolar. Tem encontrado dificuldades para progredir em relação ao
aprendizado de leitura e escrita. De acordo com sua responsável, foi apenas no
presente ano que começaram a ser observados alguns progressos nesse sentido.
Durante os anos anteriores a criança esteve sob a responsabilidade da avó
materna. Às vezes J demonstra comportamentos agressivos em relação a seus
colegas, sem razão aparente.
Ao iniciarmos os atendimentos de J, propusemos
uma atividade com jogos psicopedagógicos. Entre as coisas que procuro evitar é
a avaliação do conhecimento escolar no primeiro momento. Weiss (2008, p. 56)
sugere atenção nesse sentido. A experiência nos mostra que a avaliação do
conhecimento escolar durante o primeiro atendimento não é uma boa opção, pois poderá
ocasionar atitudes defensivas, gerando desinteresse por parte do avaliado em
relação às atividades apresentadas.
Nesse
sentido, penso sobre como alguns discursos vão sendo assimilados durante a
nossa formação e acabam se transformando em parte do nosso modo de agir profissionalmente.
A ideia de que há um tema recorrente por detrás das diversas situações
vivenciadas pelo sujeito é uma questão a que procuro estar atento e que vem de
outra leitura. Precisamos observar as linguagens expressas em atendimento, o
que envolve a comunicação verbal e também a corporal. Observo, no primeiro
momento, como é a forma de se posicionar diante do desafio surgido em situação
lúdica. Durante alguns atendimentos, em trabalho com crianças inteligentes, mas
inibidas, você pode perceber o tema recorrente em diversas situações. Numa dessas
situações de atendimento, a aprendente afirmou que não aceitou fazer parte de
um time de futebol, quando convidada por seus colegas, para não prejudicar o
desempenho da equipe. Pouco depois, disse que em situações em que deveria ler
em voz alta, começava a gaguejar e por isso evitava a leitura coletiva. O tema
recorrente nessas situações é a insegurança. Já presenciei inúmeros casos
parecidos, em que a convivência com os colegas de turma ou o posicionamento
diante dos desafios do aprendizado apresentaram mudanças significativas após o
investimento em orientações e a parceria com os educadores, resignificando o
papel do erro e do desafio no processo do aprendizado.
No
caso de J, especificamente, pareceu não haver uma situação caracterizada por
uma dificuldade global. Era no âmbito escolar que a dificuldade se instalara. A
coragem diante do desafio em situação lúdica não lembrava o aluno diante das
dificuldades escolares. Também havia uma visão muito negativa das próprias potencialidades,
chegando mesmo a fazer avaliações muito pessimistas de sua capacidade de
aprender. Mencionou ainda, em certa ocasião, que acreditava que ninguém gostava
dele na escola. Foi observado em situação de aplicação de prova piagetiana, com
teste adequado à sua idade, cumprindo as expectativas desse momento de seu
desenvolvimento. Com frequência, tinha dificuldade em dizer o dia da semana. A
leitura dos numerais da ordem da centena não era feita adequadamente. Nas
leituras que eram feitas para ele, sempre percebia intencionalidade,
interpretando e dando respostas inteligentes para as questões apresentadas. No
entanto, também era muito comum o uso de estratégias de adivinhação das
palavras durante a leitura, o que o levava frequentemente a ler palavras
diferentes das que estavam no texto. Além disso, era constante a prática de
dizer “coisa” em vez dos nomes reais dos objetos. Na escrita, havia uma
confusão na hora de usar determinadas letras cujos sons mudam conforme o
contexto, como ao escrever “Gapão”, em vez de Japão. Aparentemente, em
decorrência das próprias circunstancias de sua criação, parecia haver uma
carência em relação a ser encorajado e poucas vezes alguém deveria ter
valorizado suas realizações intelectuais. Nas ocasiões em que isso era feito,
reagia muito bem ao reconhecimento obtido.
Embora
muitos meninos de sua idade já realizassem leitura com fluência na língua
materna, J continuava lendo de modo vagaroso, com muitas pausas e confusões
relacionadas a letras de formas parecidas. Nesses casos, perguntava, às vezes,
coisas como: “se a barriga da letra está para este lado, é d ou b?” À medida
que os atendimentos prosseguiam, continuamos trabalhando com jogos, como Torre
de Hanói, Barricade, Senet e Damas, entre outros, mas com ênfase em jogos
relacionados à leitura. Em tais situações, foi possível observar aspectos como
atenção, atitude diante dos erros e desafios surgidos à medida que a sua
complexidade aumentava e a maneira como lidava com a perda. Para trabalhar a
consciência fonológica, propus um jogo que eu mesmo desenvolvi, com figuras que
apresentavam objetos cujos nomes iniciavam com grafemas representando o mesmo
som. Trabalhamos com rimas, aliterações e apresentamos atividades que ajudavam
a desenvolver a atenção para os aspectos da lateralidade envolvendo a leitura.
Sua consciência fonológica desenvolveu-se rapidamente. O reconhecimento rápido
das letras de forma parecida continuou sendo um dos aspectos que dificultavam a
sua leitura e que teve que continuar sendo trabalhado. Para acostumá-lo a prestar
atenção aos movimentos envolvidos na produção dos sons, foi providenciado um
conjunto de cartas que conhecemos pelo nome de “método das boquinhas”. Fizemos
algumas pesquisas sobre atividades que poderiam ser trabalhadas durante os atendimentos.
No atendimento seguinte, entregamos pequenos pedaços de papel em tiras,
contendo palavras que deveriam ser dispostas numa ordem específica para formar
uma frase que fizesse sentido.
Depois
passamos para a leitura de um poema do livro “a arca de Noé”. Ao longo dos
atendimentos, vieram muitos outros títulos, como A chegada do invasor e O rei
Gilgamesh, que estiveram entre suas leituras favoritas. Foi possível
observar que as dificuldades de leitura existentes traziam consequências para
outros aspectos, como aqueles relacionados ao léxico. Muitas das palavras encontradas
durante as leituras dos textos ofereciam dificuldades em vista de não serem
conhecidas. O vocabulário de alguém que não lê com frequência permanece mais
restrito, como de fato é o de J. Muitas palavras não encontradas no dia a dia,
presentes nos textos lidos, soavam-lhe estranhas. Gastava um bom tempo
repetindo-as para si mesmo e depois perguntava pelos seus significados. Foi
possível perceber que a fonte das letras impressas, assim como o estilo das
mesmas, também poderia interferir na fluência da leitura. Quando as letras de
um texto eram escritas em maiúsculas, isso influenciava significativamente a
qualidade da decodificação apresentada.
Ao
longo do período em que ocorreram os atendimentos, mudanças significativas
foram sendo percebidas. Conforme foi retomando sua autoconfiança, o interesse
pela leitura foi surgindo. Combinamos que no próximo atendimento a leitura
seria feita após a visita à biblioteca da escola, e que o livro lido nesta data
seria escolhido por ele. Embora tivessem ocorrido poucos atendimentos até
aquele momento, percebeu-se que a velocidade de leitura começa a mostrar
evolução significativa. A presença de notações léxicas no texto costumava
apresentar dificuldades. Em certo momento, pergunta como ficava o “a” com o “~”
em cima. Nos estudos feitos sobre dificuldades de leitura e dislexia tenho lido
que a correção deve ser possibilitada imediatamente após a ocorrência do erro.
Aproveito, então, para reforçar a explicação, oferecendo exemplos de várias
palavras em que surge o referido sinal. O fato de estar perguntando sobre
notações léxicas demonstrava que seu interesse pela leitura estava aumentando.
Dava a impressão de que começava a ver a leitura como algo que começava a fazer
sentido. Não era só quanto ao ritmo da leitura que demonstrava evolução. Podia-se
perceber melhora significativa com relação à autoestima e à motivação apresentadas
para os estudos. Na escola, estava mais feliz e comunicativo.
Continuando
os atendimentos com ênfase sobre as atividades de leitura, trabalhamos com
jogos de adivinhação. Foram apresentadas frases do tipo: “Girafa é uma palavra que possui três sílabas. Existe uma ave cujo nome
tem três sílabas, duas das quais é a segunda sílaba de girafa. Que ave é essa?”
(Arara). Trabalhamos, no mesmo atendimento, jogos para exercitar a consciência fonológica
e fonêmica. Por exemplo: “O que teremos
se trocarmos a primeira letra da palavra PAZ pela letra F?”. “Como fica a palavra CARAMELO se eu
pronunciar sem a segunda sílaba?”. “Encontre uma palavra que rima com CARTAZ”.
Atividades como essas e as demais desenvolvidas tinham o objetivo de propor
reflexões sobre a língua escrita.
Outros
aspectos foram sendo observados à medida que os atendimentos iam ocorrendo. Um
deles diz respeito à atenção. Notamos que era comum apresentar um comportamento
desatento. Já nos primeiros atendimentos fiquei intrigado com o modo como o
aluno respondia uma pergunta feita pela primeira vez. Em muitas ocasiões, a
resposta parecia não ter relação com o que havia sido perguntado. Apresentada
pela segunda vez, a resposta esperada ocorria quase sempre. Entre as
intervenções necessárias, evidentemente poderia contribuir para ajudá-lo a
intervenção pedagógica feita por meio de leituras em voz alta. Muitos alunos
não leitores ou leitores lentos são capazes de apresentar bom conhecimento de
mundo, sem que consigam, muitas vezes, decodificar adequadamente um texto.
Quando não há atenção especial para esses casos, os alunos acabam prejudicados.
Pensemos sobre como nós, leitores experientes, muitas vezes recorremos à
releitura quando uma questão não nos pareceu clara o suficiente para ser
respondida. Nesses casos, sempre relemos. Quando a releitura não for possível, não
deveria ser possibilitada por um leitor mais experiente, quando necessária?
Nos
atendimentos seguintes, voltamos a trabalhar sobre os sons, com jogos como
Trinca dos Sons. Adaptei esse jogo de outro que uso com frequência, o jogo
Trinca dos Animais. A ideia do jogo é formar trios com figuras de objetos e/ou
animais que iniciem com o mesmo som. Algumas figuras que usei foram: bola,
dente, navio, nave, dedo, tocha, vassoura, dado, tatu, teia, vela, peixe,
foice, faca, música, pipa, maça, nuvem, foca, pato, vaca. Escolhi as figuras
por serem mais comuns e evitarem ambiguidade na hora de identificá-las. Em
seguida, passamos para a leitura e recontagem de histórias. Como ele não tinha
muita prática nesse sentido, a princípio pareceu um pouco relutante. Depois que
eu mesmo realizei essa atividade com duas histórias curtas, aceitou recontar
uma história que li em voz alta. Em determinados momentos, tomava a iniciativa
de ler um trecho de um livro de seu interesse. “J” afirmou durante o último
atendimento: “Agora é sério, eu estou aprendendo a ler mesmo”. Disse que estava
praticando a leitura diariamente em casa, com os livros que emprestava da
biblioteca.
Certamente
será necessária muita atenção às dificuldades que ainda existem. No entanto, é
inegável que avanços significativos foram feitos. A observação dos progressos
identificados durante os encontros realizados nos motivam a continuar
investigando sobre formas de atender tais demandas. Também nos conscientizamos
de que a formação continuada é uma necessidade que se impõe à prática de
qualquer profissional da educação, e que essa formação se faz no diálogo entre
os estudos teóricos e nossa prática diária.
Qualquer
intervenção realizada diante de situações de baixo desempenho escolar se caracteriza
por sua complexidade. As pessoas são diferentes em suas aptidões, criações,
valores, aspirações e numa infinidade de outras situações que caracterizam a
singularidade humana. No caso em questão, buscamos focalizar as estratégias
psicopedagógicas empregadas para realizar a intervenção. No entanto, estamos
cientes de que as dificuldades do aprender não ocorrem de maneira isolada. Pelo
contrário, envolvem todas as dimensões da pessoa que aprende. Por esse motivo,
ao trabalhar com a oferta dos serviços necessários, é importante que as ações
contemplem os aspectos afetivos e relacionais do aprendente. Também é
importante que se ofereça apoio aos responsáveis, pois muitas vezes o
sofrimento daquele é vivenciado por esses.
E
também podemos pensar sobre o quanto é importante o desenvolvimento de
ambientes institucionais humanizados para que o aprendizado se estabeleça
dentro de um ambiente capaz de estimular no ser humano a capacidade de
acreditar em seu valor e em suas potencialidades, aspectos diretamente relacionados
ao aprender, em nosso modo de entendê-lo.
Não
há justificativa alguma para o fracasso na educação de uma criança inteligente,
que mesmo assim esteja se mostrando incapaz de progredir no aprendizado da
língua materna, embora tenha dedicado três anos da vida aos bancos escolares. A
realização de diagnósticos e intervenções individualizadas é a única forma de
auxiliar essas crianças em seu aprendizado. Para que seja evitado sofrimento e prejuízo
à sua autoimagem, esse acompanhamento deve ter caráter preventivo, iniciado o
mais cedo o possível. Parafraseando uma frase que ouvi, podemos dizer que quando
o aluno não aprende do modo como é ensinado, é preciso ensiná-lo de modo como
pode aprender.
Pesquisa
Bibliográfica
LEVINE,
Melvine D. Educação
Individualizada: motivação e aprendizado sob medida para seu filho. Rio
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LINS,
Guto. Cadê. São
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PERRAULT,
Charles. Contos e fábulas. São Paulo: Iluminuras, 2007.
SOUZA,
Flávio de. A chegada do
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WEISS,
Maria Lucia Lemme. Psicopedagogia
clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. Rio
de Janeiro: Lamparina, 2008.
ZEMAN, Ludmila. O rei Gilgamesh. Porto Alegre: Editora Projeto, 1999.
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