Casos
de crianças e adolescentes que, embora dotados de boa capacidade para a
execução de atividades em outros domínios, demonstram expressivas dificuldades
para a realização da leitura de textos simples, podem deixar os seus
professores intrigados. Mesmo educadores com experiência em alfabetização podem
experimentar o sentimento de frustração diante de um caso em que as
dificuldades de leitura persistem, apesar de seu empenho em oferecer ajuda
profissional. Muitas vezes notamos como a tarefa de converter sinais acústicos
(sons) em grafemas (letras), mantendo a ordem em que foram emitidos, pode ser
exaustiva para algumas crianças em idade escolar. Nessas condições, é possível
que se esteja diante de um caso de dislexia.
O
início do interesse por esse tipo de transtorno remonta ao ano de 1872, quando
o termo “dislexia” foi mencionado pela primeira vez. Posteriormente, no ano de
1896, Morgan publica um estudo, no British
Medical Journal (BMJ), relacionado ao caso de um adolescente com incapacidade
para ler, embora fosse dotado de condições adequadas de inteligência (Rotta,
Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 133). No ano de 1928, Orton estudou crianças que
apresentavam inabilidades para a leitura, as quais evidenciavam “distorções
perceptivo-linguísticas”, que resultavam na produção de letras, palavras e
imagens espelhadas (idem). Ao diagnóstico dessas crianças, com dificuldades
acentuadas para a aquisição da leitura, porém com inteligência preservada,
Orton aplicou o termo “estrefossimbolia”, o qual relacionou a tais inversões na
escrita que, segundo sua opinião, era algo encontrado com frequência nas
crianças que apresentam o transtorno. Continuando os estudos sobre o assunto,
Orton verifica que a dificuldade dessas crianças estava relacionada à
possibilidade de reproduzir, na ordem apresentada, sequencias de letras ou
sons. Para Orton, a dislexia estava associada também às dificuldades na
lateralidade, vendo relação entre esse aspecto e as questões visuais, como a
escrita em espelho. No entanto, estudos posteriores, como o realizado por Ramus
e cols, em 2003, questionaram esse aspecto (op. cit. p. 135).
Outra
conclusão a que Orton chegou foi que essa condição estava presente entre
pessoas da mesma família, indicando a relação do transtorno com o fator
genético (op. cit. p. 133-134). A hipótese genética foi investigada de maneira
intensa na década de 1990. Nesse período, os estudiosos do assunto se
interessaram pela busca de indicadores que relacionavam o distúrbio à presença
de más formações, ou também de alterações funcionais no cérebro de disléxicos,
sendo confirmadas ambas as hipóteses por meio de estudos de autores como Kemper,
Galaburda, Levistsky e Duffly (op. cit. p. 134). Em 2001, Galaburda e cols
relacionaram alterações na citoarquitetura cerebral, em áreas como córtex
temporal e tálamos com as dificuldades no processamento dos sons por parte de
pessoas disléxicas (op. cit. p. 140).
Estudando
os casos de crianças disléxicas, percebeu-se que a dificuldade para a leitura
não era causada por problemas sociais, emocionais, déficits sensoriais ou falta
de motivação ou de instrução (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 135). Essa
forma de compreender a natureza da dislexia está presente em documentos
oficiais utilizados por especialistas no momento presente:
“As dificuldades de aprendizagem não podem ser explicadas
por deficiências intelectuais, acuidade visual ou auditiva não corrigida,
outros transtornos mentais ou neurológicos, adversidade psicossocial, falta de
proficiência na língua de instrução acadêmica ou instrução educacional
inadequada”
(DSM 5, p. 67).
As
características associadas à dislexia incluem leitura lenta, imprecisa,
hesitante, realizada com grande esforço. Também ocorrem dificuldades na
soletração de palavras. Na leitura em voz alta, notam-se tentativas de
adivinhação. Por exemplo, lendo a primeira sílaba e tentando deduzir qual é a
palavra. Pode acontecer também de a leitura ser realizada de modo adequado,
porém com comprometimento na compreensão das ideias do texto. Na escrita, podem
ocorrer acréscimos, omissões ou substituições de vogais ou consoantes. As
dificuldades dos disléxicos costumam ficar mais evidentes à medida que os
assuntos escolares se tornam mais complexos. No DSM 5, os transtornos
específicos da aprendizagem também são classificados de acordo com a terminologia
“leve”, “moderada” ou “grave”, dependendo da intensidade do prejuízo ocasionado
ao sujeito no domínio acadêmico (idem).
Quando
submetidas aos testes de inteligência, as crianças que apresentam transtorno
específico da aprendizagem com prejuízo na leitura demonstram desempenho
equivalente ao de seus pares, em que não são verificadas as mesmas dificuldades
de leitura. Esses sujeitos costumam apresentar lentidão ao ler, sendo as
palavras lidas individualmente, o que dificulta a compreensão do texto lido.
Durante a leitura, a dificuldade do disléxico ficaria mais evidente diante das
palavras inventadas, ou pseudopalavras (Rotta, Ohlweler, Riesgo, 2016, p. 135).
Outros
estudos contribuíram para a compreensão das diferentes manifestações da dislexia,
em que podem ocorrer dificuldades para o processamento dos sons (disfonética), ou
em que a dificuldade predominante é visual (diseidética), ou ainda em que as
dificuldades resultam de uma combinação de ambas as modalidades anteriores, o
que constituiria em uma forma mais grave de dislexia (op. cit. p. 137).
O
melhor conhecimento dessa condição também possibilitou pensar sobre ações que
poderiam contribuir para melhora nos critérios diagnósticos e em ações que
poderiam ser realizadas diante de alguns indicadores da provável ocorrência do
transtorno. As dificuldades no processo fonológico, que constituem um aspecto
presente nesses casos, poderiam ser identificadas precocemente, já no Jardim de
Infância, para o conhecimento dos sujeitos em risco (Rotta, Ohlweler, Riesgo,
2016, p. 135). Programas de intervenção realizados precocemente podem
contribuir para a melhora em relação às dificuldades apresentadas pelos
disléxicos (op. cit. p. 144).
Ações Para Auxiliar Educandos com Dislexia
A
entrevista realizada com a família permitirá o levantamento de informações
importantes sobre o processo de desenvolvimento da criança. A anamnese precisa
verificar os aspectos relacionados aos períodos pré, peri e pós natais, com as
características do desenvolvimento global do aluno, bem como do desenvolvimento
da linguagem oral e sua história familiar.
É
necessário também estar atento aos aspectos comportamentais que podem surgir ao
longo de sua escolarização, como problemas de autoestima, desinteresse pelos
estudos, etc (idem).
Também
é importante verificar as características da leitura e da produção textual atual
demonstrada pela criança (op. cit. p. 142). Na escrita, ocorrem confusões ao
grafar letras que se diferenciam apenas quanto à disposição espacial (p/q,
b/d), ou que tenham sons parecidos (t/d; f/v)? A criança inverte palavras na
hora de escrevê-las? Sua escrita omite ou acrescenta letras? Encontra
dificuldade para realizar a divisão silábica? Acha difícil reconhecer rimas?
Sendo possível, tomar conhecimento das observações dos professores também
auxiliará nesse momento.
Profissionais
da área da psicopedagogia ou da fonoaudiologia, ao tratar o problema, promovem
a reeducação da linguagem escrita, fazendo necessária a realização de um
diagnóstico adequado ao planejamento do tratamento (op. cit. p. 144). Outra ação importante desses profissionais se
refere à indicação das adequações pedagógicas necessárias ao progresso escolar
(op. cit. p. 155).
Uma
investigação adequada da história do desenvolvimento pessoal do aluno e de suas
dificuldades de aprendizagem possibilitará a elaboração de estratégias de
intervenção mais eficazes, propondo mudanças positivas em todos os espaços de
convivência do aluno.
Algumas Sugestões de Ações e de Adequações
Pedagógicas
Explicar
ao aluno a natureza de seu problema e colocar-se à sua disposição para ajudá-lo.
Realizar
trabalho de conscientização da turma, para evitar que o aluno seja alvo de
ridicularização por parte dos colegas.
Posicioná-lo
mais próximo de seus educadores, para permitir maior atenção pedagógica.
Explicar
os conteúdos de forma objetiva e perguntar ao aluno se a explicação ficou
clara.
Em
caso de haver dificuldades atencionais, oferecer um lugar adequado, em que o
aluno possa se concentrar na tarefa.
Adequar
a complexidade dos textos oferecidos ao aluno ao seu nível de competência de
leitura atual.
Evitar
solicitações de que reescreva trabalhos já produzidos, pelo fato de conter
erros de escrita. Considerar o conteúdo textual, mais do que sua grafia, como
critério de notas.
Evitar
solicitações de leitura em público.
Oferecer
previamente uma cópia impressa dos textos que serão trabalhados em sala de aula,
para que treine a leitura em casa.
Ensinar
a realizar resumos de explicações oferecidas durante a aula.
Permitir
o uso de corretores de texto para a realização dos trabalhos escritos.
Oferecer
explicações em áudio, para que possa ouvi-las novamente, para compreender
melhor o conteúdo, pois ouvir e escrever ao mesmo tempo constitui uma tarefa
demasiadamente complexa para o disléxico.
Oferecer
materiais que possam ser visualizados (gráficos, ilustrações, figuras)
acompanhando o texto escrito.
Evitar
solicitações de cópias de textos longos e deveres de casa com produções
extensas.
Oferecer
a possibilidade de realizar avaliações orais.
Disponibilizar
tempo extra para a conclusão das atividades escolares.
Permitir
o uso de calculadora e de tabela de multiplicação impressa (Rotta, Ohlweler,
Riesgo, 2016).
Criando Uma Rede de Apoio
É
necessário que sejam consideradas as características das relações interpessoais
experimentadas pelo aluno em seu dia a dia como um tema importante no suporte
necessário ao seu progresso nos estudos. Nesse sentido, alguns autores destacam
a relevância das características do ambiente para auxiliar alunos que
apresentam dificuldades de aprendizagem a lidar com o problema:
“Embora as dificuldades de aprendizagem sejam causadas por
problemas fisiológicos, a extensão em que as crianças são afetadas por elas
freqüentemente é decidida pelo ambiente no qual vivem. As condições em casa e
na escola, na verdade, podem fazer a diferença entre uma leve deficiência e um
problema verdadeiramente incapacitante. Portanto, a fim de entendermos as
dificuldades de aprendizagem plenamente, é necessário compreendermos como os
ambientes doméstico e escolar da criança afetam seu desenvolvimento intelectual
e seu potencial para a aprendizagem” (Corinne, Strick, 2007, p. 30).
Não
devemos nos esquecer da importância de oferecer suporte à família. Frequentemente,
o conhecimento das dificuldades de aprendizagem não costuma estar entre os
assuntos com os quais a família pode lidar sem ajuda especializada. O
especialista em psicopedagogia, ao atender as famílias de crianças com
dificuldades de aprendizagem, poderá esclarecer a questão e explicitar as
estratégias que serão utilizadas, para que fique claro para os responsáveis
qual será o seu papel nesse trabalho.
No
espaço escolar, poderão ser desenvolvidas ações em conjunto, envolvendo o
trabalho dos professores e do psicopedagogo, a exemplo das intervenções
psicopedagógicas em sala de aula. Isso pode ser discutido previamente com os
professores, a fim de planejar o melhor momento para a intervenção. Nessa
ocasião, o psicopedagogo poderá contribuir, ao propor temas que despertem
reflexões que favoreçam o surgimento de atitudes de sensibilização coletiva
para o problema.
Considerações Finais
Embora
a dislexia não seja decorrente da falta de motivação para os estudos, notamos
que a perda da motivação pode ocorrer diante da falta de assistência
educacional adequada. A sensação de fracasso nos estudos também pode contribuir
negativamente para o desenvolvimento de problemas relacionados à autoestima
desses alunos, quando deixados sem o suporte pedagógico de que necessitam.
Uma adolescente
disléxica que atendi anos atrás me relatou o seu sentimento de abandono diante
da situação inicial de seu diagnóstico de disléxica. Conforme mencionou, “eles
jogaram a bomba e depois saíram fora”. Com isso, quis dizer que o diagnóstico
por si só não trouxe alteração na forma como o processo educacional era
conduzido, pois continuava experimentando o sentimento de confusão nas
situações de ensino e aprendizagem. Portanto, é necessário haver sensibilidade
para a questão. A equipe escolar pode ajudar, adequando as demandas
relacionadas às tarefas escolares e extraescolares. Outra questão importante,
que tenho percebido, é a necessidade de desmitificação do problema. Tanto a
criança disléxica, quanto seus familiares e educadores, necessitam compreender
o que é a dislexia (Em algumas ocasiões, pode haver vantagem em explicar a
natureza do problema para a classe em que o aluno disléxico está matriculado,
após discutir com os responsáveis e com o aluno sobre essa possibilidade). O sentimento de confusão experimentado
por todos os envolvidos no processo educacional precisa ceder lugar à atitude
de certeza de que sabemos com o que estamos lidando e de que também sabemos
como ajudar. Essa mudança pode contribuir para a redução das ansiedades
experimentadas pelos envolvidos nesse processo. Nesse sentido, diante da
necessidade de transformação nas condições escolares necessárias ao atendimento
de alunos disléxicos, a atuação do profissional de psicopedagogia poderá trazer
contribuições importantes.
Bibliografia
Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais DSM-5 / [American Psychiatric Association].
Porto Alegre: Artmed, 2014.
ROTTA, OHLWELER, RIESGO (Orgs). Transtornos da aprendizagem: abordagem
neurobiológica e Multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2016.
SMITH, Corinne; STRICK, Lisa. Dificuldades de aprendizagem de A a Z : um
guia completo para pais e educadores. Porto Alegre : Artmed, 2007.