Furia Versus Inteligência *
*Contação
livre da estória “O pescador e o gênio”.
Era uma vez um pescador muito pobre. Em certa manhã, como de costume, saiu em direção à praia, sentindo-se entusiasmado com a possibilidade de realizar uma boa pescaria. Porque era um homem muito religioso, não iniciou seu trabalho senão depois de realizar suas habituais orações, pedindo a benção divina sobre o mesmo. Em seguida, se propôs a lançar a rede ao mar por quatro vezes e, independentemente do que alcançasse após essas tentativas, voltaria para sua casa levando o que tivesse obtido. Após adentrar ao mar e, tendo chegado a certa profundidade, lançou a rede pela primeira vez. Ao recolhê-la, constatou que havia pescado apenas o cadáver de um burro. Por um momento, o pescador se deixou tomar pela decepção, mas ainda que se sentindo sob “os caprichos do destino”, apostou que as próximas tentativas seriam mais recompensadoras, e assim continuou fazendo o que sabia e podia fazer, lançar a rede ao mar.
Na
segunda tentativa, sua sorte não foi melhor, nem na terceira. Uma vez após a
outra, o pescador obteve resultados desanimadores ao recolher a rede. Esses
repetidos insucessos em obter uma boa pescaria levam o pescador a sentir-se
amargurado, concluindo que em muitas situações a sorte pode ser favorável ao “canalha”
e contrária ao “homem educado”.
Por
fim, as coisas ainda pioraram quando, ao recolher a rede pela quarta vez, puxou
um “vaso de cobre amarelo”, cuja boca “se encontrava lacrada com chumbo”. Não
pensou duas vezes, e logo pegou uma faca e começou a romper o lacre.
Sobre
o ser que habitava o interior do vaso, conta-se que foi aprisionado ali por ter
desobedecido o rei Salamão, considerado por muitos o homem mais sábio que já
existiu. Pois bem, quando o lacre foi retirado, o referido prisioneiro, nada
menos que um Ifrit, assumindo a forma de uma fumaça escura, abandonou o local
em que estivera aprisionado havia quase dois mil anos. Em seguida, a fumaça foi
tomando forma de uma figura gigantesca, cuja estatura se estendia do chão até
as nuvens. Sua aparência era tão horrenda, tão amedrontadora, que fez os ossos do
pescador congelarem de pavor. Essa criatura, além da aparência assustadora,
tinha intensões não menos pavorosas, que consistiam em matar aquele que a
pusesse em liberdade, como recompensa por tê-lo feito, permitindo apenas que o
infeliz escolhesse o tipo de morte com a qual deveria morrer.
Imagine-se
por um momento no lugar do pobre homem. O que você faria para tentar escapar do
furioso gênio?
A princípio, o pescador chorou, implorou misericórdia,
mas, em seguida, percebendo que suas súplicas não seriam atendidas (porque o
Ifrit se mostrava inflexível em relação ao que pretendia fazer), elaborou uma
estratégia para se ver livre do ser ameaçador, depois de conseguir recuperar alguma
calma, que era necessária ao uso de sua razão. Seu plano era o seguinte. O
pescador simularia incredulidade em relação ao fato de tão gigantesca criatura
ser capaz de viver contida em um simples vaso, ainda que não fosse tão pequeno
como um vaso comum. E o gênio, para seu azar, acreditou que o pescador apenas
queria confirmar essa opinião. E, por isso, a horrenda figura se transformou em
fumaça, entrou novamente no vaso, o qual foi rapidamente fechado pelo pescador,
tão logo se certificasse de que a criatura estava toda em seu interior. Ao
perceber que caíra no plano do pescador, o gênio se esforçou para tentar sair
do vaso novamente. Mas não conseguiu, pois foi selado com o mesmo lacre usado
para aprisioná-lo anteriormente, impossível de ser rompido, pois continha a
menção do poderoso nome do criador de todas as coisas sobre ele.
O
modo como a estória termina me fez lembrar da conclusão de uma fábula de
Monteiro Lobato, em que a galinha consegue lograr a raposa, cujo desfecho é
expresso com a seguinte máxima: “contra esperteza, esperteza e meia”.
A Psicanálise, o Uso da Imaginação e a Psicopedagogia
Institucional
Recentemente,
comecei a trabalhar, no âmbito institucional, com a contação de estórias. É
interessante observar como a instituição responde positivamente a iniciativas
desse tipo e o quanto as estórias maravilhosas tem o potencial para despertar
situações capazes de promover a humanização na convivência do coletivo escolar.
Uma boa narrativa é capaz de captar o interesse, de mobilizar algo de nosso
mundo interno, ao falar de coisas imaginárias, as quais contém algo de
verdadeiro sobre nós mesmos. A importância dessas estórias foi um tema bem
desenvolvido pelo autor de A psicanálise
dos contos de fadas. Quando trata da questão da relação entre verdade e
mentira, relacionadas ao mundo imaginário, e do receio de muitos pais em relação
a essas histórias, pelo fato de que as mesmas não parecerem “verdadeiras”,
Bettelheim afirma:
Algumas
pessoas consideram que os contos de fadas não apresentam quadros de vida
“verdadeiros”, e que, por conseguinte, são pouco saudáveis. Não lhes ocorre que
a “verdade” na vida de uma criança possa ser diferente da dos adultos. Não
percebem que os contos de fadas não tentam descrever o mundo externo e a
“realidade”. Nem reconhecem que a criança sadia nunca acredita que estes contos
descrevam o mundo realisticamente (1980, p. 147).
E mais
adiante, retoma a questão, afirmando:
Outros
pais temem que a mente da criança possa ficar tão entupida de fantasia de fadas
que não aprenda a lidar com a realidade. De fato, o oposto é verdadeiro. Embora
sejamos complexos – cheios de conflitos, ambivalências e contradições -, a
personalidade humana é indivisível. Qualquer que seja a experiência, sempre
afeta todos os aspectos da personalidade ao mesmo tempo. E a personalidade
total, de forma a poder lidar com as tarefas da vida, precisa fundamentar-se
numa fantasia rica combinada a uma consciência firme e uma apreensão clara da
realidade (op. cit. p. 149).
A
partir de sua experiência clínica, é o mesmo autor quem argumenta que “as
teorias de repressão do id não funcionam”. Nesse sentido, exemplifica mencionando
como uma criança que havia perdido a fala recuperou-a após a realização de um
extenso trabalho terapêutico, mostrando o quanto o mutismo tinha relação com
aspectos emocionais que fora obrigado a reprimir (op. cit, p. 152).
Podemos
perceber, também em nossa experiência, que há um grande potencial na contação
de histórias, para captar a atenção e despertar a reflexão de públicos de
qualquer idade. Ao contar a estória O pescador e o Gênio, apresentando também algumas
contribuições decorrentes de análises do conto do ponto de vista psicanalítico,
como apresentadas por Bettelheim, percebemos grande interesse do público-alvo.
A
valorização do pensamento pelos ouvintes foi observada em várias situações,
como no momento em que o gênio esbraveja as ameaças de morte contra o pescador.
Nesse momento, solicitava-se a opinião antes de apresentar a estratégia
utilizada pelo personagem, pedindo ao público ouvinte (adolescentes) que
imaginasse soluções para o conflito.
Algumas
respostas como “eu sairia correndo”, foram constantes. Debatemos depois a
respeito da maneira como costumamos responder, de modo automático, diante de
situações que percebemos como ameaçadoras. A possibilidade de encontrar
alternativas inteligentes para conflitos que acionam nossas defesas, e do papel
do pensamento como forma de agir de modo eficaz diante das situações que nos
mobilizam, gerou uma discussão produtiva.
Uma
das situações discutidas ocorreu a partir da análise que Bettelheim (op. cit.
p. 39) faz da maneira como o gênio reage ao seu aprisionamento, ao falar dos “sentimentos
engarrafados”. Sobre essa expressão, o autor explica como o gênio, ao ser
aprisionado, a princípio prometeu que recompensaria quem o libertasse, mas, a
medida que o tempo passou, vendo frustrados seus anseios pela liberdade, jurou,
da próxima vez, que mataria quem o libertasse. Essa observação serviu, durante
a dinâmica, para levar a uma reflexão sobre como os sentimentos, recalcados,
podem gerar sofrimento.
A
partir da mesma expressão, foi proposta uma dinâmica, por meio da qual todos os
que ouviram a estória foram convidados a pensar em seus sentimentos
engarrafados e, a menos que os considerassem como pessoais, poderiam produzir
uma frase, um texto, um desenho ou simplesmente uma declaração de algo que
desejassem expressar ao grupo.
A
partir das respostas obtidas na dinâmica anterior, estudamos um artigo
relacionado aos motivos que levam os jovens a buscar no alcoolismo, no
tabagismo e nas demais substâncias, formas de lidar com ansiedades decorrentes
da timidez, da pressão do grupo, entre outras situações, e o quanto essas
pressões podem estar relacionadas aos “sentimentos engarrafados” desses jovens.
Nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (v. 10) encontramos, entre os “objetivos
gerais do ensino fundamental”, a necessidade de tornar os alunos capazes de: “Posicionar-se de maneira crítica,
responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o
diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas”.
Também
podemos considerar o papel conferido à escola, quando o mesmo documento aborda
a relação entre esta instituição e a saúde, ao afirmar: “A escola cumpre papel destacado na formação dos cidadãos para uma vida
saudável” (v. 8, p. 34).
Nesse
sentido, um colega de magistério comentou que achou interessante o uso da
imaginação como forma de envolver os educandos em situações de reflexão. Embora
estejamos dando os primeiros passos nesse projeto, por meio do diálogo entre
Psicanálise, Psicopedagogia e saúde, foi possível perceber que essas situações
possibilitaram pensar a escola como espaço relacionado aos diversos
aprendizados, o que, às vezes, se estende (ou deveria) aos aspectos práticos da
vida cotidiana.
Bibliografia
BETTELHEIM,
Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
BRASIL. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural,
orientação sexual. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais,
ética. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
Anônimo. Livro das mil e uma noites, volume I,
ramo sírio. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2006.